quinta-feira, setembro 11, 2008

XXII.X.MMV



O Amor vestido de negro sorriu-me maliciosamente ao balcão. Já o conhecia de um outro bar, há já algum tempo atrás. Do que conhecia dele, julgava-o um tipo afável, terno e meigo. Com um daqueles olhares inocentes de criança, capaz de te fazer sorrir, mesmo quando as lágrimas te correm pelo rosto… Julgava-o um tipo simpático, de asas inquietas e sorriso pueril, capaz de depositar um sorriso alado em mim… julgava-o capaz de me fazer estremecer quando o sentisse por perto… De facto assim foi… durante algum tempo. Devia ter desconfiado daquele sorriso… Devia ter desconfiado daquele olhar… No início, todas as noites o encontrava naquele bar, ao balcão. Sorria… timidamente vestido de negro, de asas recolhidas, mas reconheci-o assim que o vi. Tentava disfarçar e não olhar para ele uma segunda vez… Devia ter desconfiado daquele sorriso…
Saía de lá com medo dele… Não o medo que se sente quando somos crianças e temos medo do escuro. O medo que se sente quando se desconhece o que vem a seguir. O tempo foi passando. Continuei a evitá-lo. Um dia entrei e olhei-o nos olhos, sem medo… admiti que ele estava lá… tinha voltado… No início… era tudo tão mágico! Todos os dias voltava à espera de o encontrar. E lá estava ele, todos os dias, a sorrir-me de longe, a fitar-me à distância. Saía de lá com um sincero sorriso nos lábios. O dia a seguir voltava. E ele lá estava. Devia ter desconfiado daquele olhar… Voltava porque sabia que o encontrava. Saía de lá radiante, tudo parecia tão perfeito… Depois, encontrava-te por aí, e nessas alturas sabia cá dentro que o Amor estaria à minha espera essa noite. Encontrava-te… Sorria… Sabia que a culpa daquele sorriso estúpido esculpido no meu rosto era dele e não tua… Era ele que tinha o poder de me fazer sorrir apenas por te olhar…
Um dia entrei, sentei-me ao seu lado. Podia sentir o seu amargo perfume (não cheirava a nuvens, como eu julgava), pude fugazmente vislumbrar o negro inebriante das suas recônditas asas sob aquele aspecto tão humano. Encarei-o. Abri um daqueles sorrisos inocentes, como todos os sorrisos apaixonados, e disse-lhe: “Ele é o sol que me doira os cabelos, o orvalho das manhãs de nevoeiro, é a água salgada que me queima a pele, o algodão doce que me cola os lábios… É a nódoa de gelado na minha blusa, o cheiro tépido da chuva na terra molhada, é a criança de olhar cândido que encontro na rua. Ele é o cheiro do chocolate quente junto à lareira, a gota de água que me arrepia, é a borboleta lilás que me pousa na mão… É o floco de neve que morre na ponta dos meus dedos, a maçã verde que trinco, o pequeno pássaro que alegre saltita à minha frente, a bola de sabão que desaparece na ponta do meu nariz. Ele está em cada poema que escrevo, em cada música que me faz chorar, em cada pedaço de mim, em cada pedra da calçada…Obrigada.”
Levantei-me e saí. Ele continuou a sorrir-me. Devia ter desconfiado daquele sorriso… Continuei a vê-lo. Ainda o vejo. Nunca mais o procurei encostado ao balcão. Mas continuo a encontrá-lo todos os dias, em todo o lado. Continuo a esbarrar-me com ele inesperadamente no dobrar de cada esquina. Tento mesmo fugir dele, mas, ainda que de asas recolhidas, rapidamente alcança a minha reles condição de humana. Acho que os deuses invejam de tal forma as lágrimas humanas, que deixam o Amor rasgar o etéreo véu do Olimpo para nos mostrar o seu verdadeiro significado…