quarta-feira, maio 28, 2008

3 - Geometria descritiva


Tenho saudades tuas... Já passou tento tempo e continuo a amar-te exactamente como no dia em que me deixaste plantada à tua espera no altar... A minha mãe insistia para irmos embora. Eu sabia que tu ias chegar a qualquer momento. "- Aconteceu alguma coisa, tenho a certeza. Ele deve estar a chegar." Mas nunca chegaste... Eu sei que nada acontece por acaso, mas pergunto-me porquê eu até hoje... Aquele que devia ter sido o dia mais feliz da minha vida, ficou marcado pela morte das pessoas que eu mais amo...
Ouvi tantas vezes as pessoas dizerem-me com palmadinhas de reconforto nas costas que um dia ia encontrar alguém e ser feliz que cheguei a acreditar nisso. Pensei que com o tempo aprendesse a viver sem ti. Tenho tentado ocupar o vazio que tu deixaste cá dentro, mas não dá... Nenhum homem me percebe como tu, nenhum me conhece como tu... nenhum me ama como tu... Sonho tantas vezes contigo... Queria tanto poder trazer-te de volta... traçar linhas de fuga ortogonais, desenhar-te a três dimensões e dar-te vida... Dava tudo para te ter comigo.
Sabes, nos primeiros meses pensei que ia acabar por me matar. Quando veio a primeira depressão, tentei mais do que uma vez, mas não tive coragem. Acho que tenho demasiado medo da morte para morrer... Sou demasiado cobarde para dar uma de heroína de história de amor que trespassa o coração com uma espada porque perdeu o seu amado. Quando era miúda adorava histórias de amor para sempre. A primeira vez que li o Romeu e Julieta pensei que queria um amor assim. Se não te posso ter, mais vale morrer. Parecia-me um bom lema de vida. O livro era da minha mãe e na contracapa ela tinha escrito a frase "Ominia uincit amor" e mais qualquer coisa. Queria dizer: o amor tudo vence. Não me lembro do resto, nem do autor, mas nunca mais me esqueci desta frase. Mas o amor não vence a morte... Se assim fosse, estavas aqui comigo. Outro dia encontrei a versão inglesa do livro numa feira de velharias. Reparei que afinal o título é The Most Excellent and Lamentable Tragedy of Romeo and Juliet. Nem o Romeu e Julieta é uma bonita história de amor! Começo a acreditar que não há verdadeiras histórias de amor com finais felizes...
S.M.

terça-feira, maio 20, 2008

E a vida segue lá fora...



Se um dia decidir morrer, morrerei entre as imundas paredes da casa-de-banho dum comboio. Seria mais poético cortar os pulsos num Regional, pela óbvia degradação do espaço e cheiro a anos e anos de suor alheio. Mas acho que nem depois de morta tenho paciência para tantas paragens! Morrer num Alfa, não tem nada de lírico. As casas-de-banho nada têm de decadente para conferirem à morte qualquer misticismo. Definitivamente, se decidir morrer, morrerei entre as paredes imundas dum WC de um Inter Cidades.

Ontem, por minutos pensei que alguém tinha tido a mesma ideia que eu. A luz de sinalização de ocupação do WC esteve ligada exactamente 19 minutos. Ora 19 minutos é tempo demais para tratar das necessidades fisiológicas. A partir do décimo minuto comecei a estranhar a intrigante demora. Quando já pouco faltava para me levantar e ir averiguar se já havia uma poça de sangue a sair por baixo da porta, saiu calmamente uma senhora loura. Ou esteve entretida entre blush, baton e rimel depois do xixi, ou esteve 15 minutos a descobrir como se saía dali...

Se eu optar por dar-me à morte, definharei entre as imundas e ensanguentadas paredes da casa-de-banho de um comboio. A vida segue o seu rumo enquanto eu me esvaio em sangue. O comboio segue o seu trilho enquanto o último sopro de vida abandona o meu corpo.

quarta-feira, maio 14, 2008

2 - Ponto de Fuga


Hoje sonhei contigo... Sonhei com o acidente, para ser mais exacta. Já passou tanto tempo e continuo a ver-te morrer nos meus sonhos. Há dias em que tenho medo de adormecer... Desta vez eu era o camião que embateu contra o carro do Pedro. Os sonhos variam, mas vejo-te morrer sempre. Nem nos sonhos vos posso ter vivos...
Não sei se já te disse, acabei com o Vasco. Falei-lhe do teste de gravidez e do pânico que senti durante os três minutos de espera. Ele disse que não era o fim do mundo, que se isso acontecesse arranjaríamos uma solução. Fui clara. A única solução para mim passava por um aborto. Disse-me que aos 29 anos já devia aceitar a ideia de ser mãe de uma outra forma. Chamou-me desumana e egoísta. Respirei fundo, tentei acalmar-me e fiz o que estava certo. Mandei-o à merda. Não é o fim do mundo ter um filho, mas é o fim do meu mundo. Mas ele não entende, nunca entendeu nada... Não quero um filho do sexo, não quero. Quero um filho do amor, e já não faço amor com ninguém há mais de 5 anos... Sim, estou bem. Há mais quem esteja disposto a entrar na minha cama quando eu quero sem me cobrar mais nada.
Por falar em filhos, a Luísa está grávida. O pai ligou ontem histérico a dizer que eu ia ter um irmãozinho. Consegui engolir o trivial "Não, obrigada mas não estou interessada" com que despacho os vendedores de aspiradores. Queria que eu fosse lá a casa para comemorar. "Não, não insista. Obrigada mas não estou interessada. Já tenho um irmão, não preciso de outro." Limitei-me a dizer-lhe que não ia lá jantar. Eu já tenho um irmão. Não preciso de um irmão feito por um pai distante e uma puta em lençóis que a minha mãe comprou.
Queria que estivesses aqui... Às vezes apetece-me fugir para longe disto tudo, desta confusão em que a minha vida se transformou. Um sítio bem longe, onde ainda estivesses vivo. Onde ele ainda estivesse vivo... Fazes-me tanta falta... Quando me pediste desculpas no hospital, devia ter dito que só te desculpava se continuasses vivo...
A avó diz que estás num sítio melhor. Quando te fartares, foge do céu, materializa-te e telefona-me a marcar um ponto e eu fujo contigo. Fugimos para um sítio onde os anjos não te encontrem para te obrigarem a voltar lá para cima, onde as inseguranças, a tristeza e os medos sem rosto não me encontrem a mim.
S.M.
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Ah! Estás aqui! Continuo sem perceber essa tua necessidade de todas as sextas-feiras te sentares na minha campa a olhar para uma fotografia que nem sequer me favorece. Quando é que percebes que eu estou quase sempre ao teu lado! Tu, que me conheces melhor que ninguém, devias saber que não consigo estar muito tempo quieto no mesmo sítio.
Se ao menos conseguisses ouvir o que eu digo... E tenho tanto para te dizer! Tento agarrar-me ao teu "Nada acontece por acaso", mas a verdade é que não encontro qualquer sentido para tudo isto que aconteceu. Morri-te e deixei-te viúva mesmo antes de te casares, deixaste o curso a meio e agora passas o dia com bandejas na mão a aturar gajos bêbedos. E tenho a certeza que davas uma excelente arquitecta... A mãe aparece morta em casa com uma fotografia minha na mão, o pai enrolou-se com a Luísa...
Qual é a lógica subjacente a isto, mana, diz-me? Nunca percebi a passividade com que aceitas tudo. Que merda! Continuo a achar que tudo podia ter sido diferente se eu não tivesses insistido com o Pedro para levar o carro. Ele parecia tão nervoso, só quis ajudar... "Eu levo o carro, não vás tu desistir e deixar a minha irmã à seca!" A estrada. O sorriso nervoso do Pedro. O camião. Escuro. Sangue. O Pedro morto ao meu lado...
Se pelo menos me ouvisses... Queria que soubesses que te amo muito, que dói ver-te todos os dias e nada poder fazer para te tirar do fundo do poço... Queria poder dizer-te uma vez mais que estarei sempre aqui para ti... Nunca cheguei a dizer-te como estavas linda naquele dia. Estavas tão linda mana! Foste a noiva mais bonita que eu vi em toda a minha vida. Foste a última coisa que vi antes de morrer... "Desculpa mana, desculpa" "Não sejas tontinho. Vais ficar bem, vai ficar tud..."

terça-feira, maio 13, 2008

À espera do esquecimento


Esperei-te como quem espera a morte às portas da eternidade. De olhar melancólico e alma em luto, chorei cada segundo passado sem ti. Sufoquei cada minuto da tua ausência entre lágrimas em vão perdidas e calei o peso da solidão entre falsos sorrisos e frases amorfas. Já gastei o tempo a ser só tua sem te ter, a tentar sonhar reais utopias. Já gastei as lágrimas, ciente dos teus incautos olhares, à espera de um final feliz para a minha história. Já gastei o que sou, a ser o que julguei que tu querias que eu fosse. Já gastei as preces a deuses ausentes e pouco alturistas. Agora olho-te com a certeza de uma causa perdida, com a frieza de um olhar resignado. Tu sempre me olhaste, mas nunca me viste. Sempre estiveste ao meu lado, mas nunca me deste a mão.

segunda-feira, maio 12, 2008

1 - Perspectiva isométrica

Hoje aconteceu-me uma coisa estranha... Cruzei-me à porta do estúdio com uma rapariga que por algum motivo despertou a minha atenção. Uma rapariga completamente normal, alta, magra, morena, de cabelos curtos, pretos e lisos. Não, não se vestia de preto, não tinha tez pálida nem olhar melancólico como as mulheres que povoam o meu imaginário e servem de inspiração às minhas músicas. Não me lembro como estava vestida, só sei que tinha uma camisa vermelha com um enorme decote. Não sei porque razão depois de os nossos corpos quase se tocarem olhei para trás e a segui com os olhos. Estava longe de ser o tipo de mulher que me faz virar o pescoço na rua, mas a verdade é que me senti preso a ela, como se a conhecesse. Não o "conhecer" do bar, ou do restaurante ou de casa de uma amiga. Senti que a conhecia milimetricamente, por dentro e por fora, como se as nossas almas contíguas tivessem uma existência comum, como se os meus dedos conhecessem cada poro da sua pele. O mais estranho é que ela ficou a olhar para mim, com os mesmos olhos com que eu a olhei... Foi como se tudo à nossa volta tivesse parado, como se tivesse caído num estado de coma. Por segundos, deixei de ouvir o que quer que fosse, só a sentia a ela e ao sangue espesso a latejar-me nas temporas. Voltei à realidade quando ouvi a travagem brusca de um carro. O sinal estava vermelho e ela atravessou a rua. Nesta altura já eu estava especado a olhar para ela, a olhá-la, caída no chão a procurar-me no meio da multidão, enquanto o condutor do carro lhe perguntava qualquer coisa, talvez estranhando a despreocupada atitude dela. Pensei ir ver se ela estava bem. Não fui. Virei costas, cobarde, como sempre, com medo do que estava a sentir...
J.T.
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Hoje aconteceu-me algo no mínimo curioso... Ia para o escritório pela 31 de Janeiro quando uma rapariga atravessa a passadeira sem sequer olhar para o semáforo. Parecia completamente absorta a olhar para não sei onde. Travei assim que me apercebi e consegui evitar o pior. O carro ainda embateu nela. Caiu, mas não me magoou. Saí do carro a correu, para a ajudar. Não sei o que se passava com ela, parecia unicamente preocupada em procurar alguém para lá do aglomerado de curiosos que rapidamente nos rodeou. Enquanto a ajudava a levantar tentei perceber para onde é que ela olhava tão persistentemente e vi um rapaz parado no meio do passeio a olhá-la. Não olhava para a rapariga que quase foi atropelada, como os outros, olhava para ela, de uma forma como já não via há muito tempo... Entretanto o rapaz virou costas, arrastando umas botas pretas, de mãos enfiadas num casaco de cabedal e olhos no chão. A rapariga, agora ciente do que tinha acontecido, pediu desculpa e seguiu o seu caminho, sempre a olhar para o outro lado da rua. Entrei para o carro e não detive um sorriso. "Estes jovens!" Parecia tratar-se de mais um cinematográfico caso de amor à primeira vista. Daqueles que arrebatam corações, levam a juras de amor eterno e, meses mais tarde, a uma visita ao meu gabinete com um pedido de divórcio.
A. Silva
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Hoje aconteceu-me uma coisa esquisita... Sei que hoje não é sexta-feira, mas tinha de te contar isto. Hoje de manhã, quando ia para o restaurante, passei por um rapaz muito parecido contigo. Parecia mais um desses gós niilistas com a mania que a vida é uma merda. Estava de preto, todo de preto, olhos pintados, cheio de correntes. Mas era tão parecido contigo... Eu sei... Vi muita gente parecida contigo no iníco. Mas desta vez foi diferente... Segurava no cigarro da mesma forma que tu... Tinha o teu olhar... Para além de fazer figura de estúpida a olhar para ele, ia sendo atropelada! O mais esquisito é que ele também ficou a olhar para mim. Era como se houvesse qualquer coisa a ligar-nos... Parou no meio da rua, mas depois acabou por seguir o caminho dele. Foi como ter-te ali por instantes, mano... Já passaram quase 5 anos e continuo sem aceitar... Tenho tantas saudades tuas... Também tenho saudades dele, mas tu fazes-me mais falta... tenho saudades do meu mano pequenino, tenho saudades de passar uma tarde inteira a falar sobre tudo e sobre nada aninhada no teu colo, tenho saudades do ar de irmão mais velho e protector com que me davas colo quando eu precisava chorar... Sinto tanto a tua falta. Dava tudo para te poder ver uma única vez, para te dizer que te amo muito, mano... Parece que quando estavas vivo não te disse vezes suficientes o quanto eras importante para mim, o quanto te amava... Queria tanto ter-te aqui comigo... Prometemos tantas vezes que estariamos sempre aqui um para o outro... Onde estás agora?
Lembras-te quando eras miúdo e vieste com uma conversa sobre os anjos cheirarem a nuvens? Depois de em vão me tentares convencer, disseste muito chateado que como eu era mais velha ia morrer primeiro e fizeste-me prometer que ia voltar para te dar razão, para te dizer que os anjos cheiram a nuvens. Afinal tu é que morreste primeiro...
S.M.

quarta-feira, maio 07, 2008

Os medos sem rosto


Às vezes a beira do precipício está tão longe como os medos que todos os dias me perseguem... Durante a noite os medos ganham vida e transformam-se em criaturas grotescas capazes de me perseguir pela eternidade. E já não chega cobrir a cabeça com o lençol e pensar em coisas boas para esquecer os monstros debaixo da cama... Era mais fácil esconder-me dos pueris monstros e dos fantasmas do que dos medos sem rosto que me perseguem.
Mais uma noite... O temor de mais uma sono agrilhoado por nefastos pesadelos reais nos braços de Morfeu...