quarta-feira, maio 14, 2008

2 - Ponto de Fuga


Hoje sonhei contigo... Sonhei com o acidente, para ser mais exacta. Já passou tanto tempo e continuo a ver-te morrer nos meus sonhos. Há dias em que tenho medo de adormecer... Desta vez eu era o camião que embateu contra o carro do Pedro. Os sonhos variam, mas vejo-te morrer sempre. Nem nos sonhos vos posso ter vivos...
Não sei se já te disse, acabei com o Vasco. Falei-lhe do teste de gravidez e do pânico que senti durante os três minutos de espera. Ele disse que não era o fim do mundo, que se isso acontecesse arranjaríamos uma solução. Fui clara. A única solução para mim passava por um aborto. Disse-me que aos 29 anos já devia aceitar a ideia de ser mãe de uma outra forma. Chamou-me desumana e egoísta. Respirei fundo, tentei acalmar-me e fiz o que estava certo. Mandei-o à merda. Não é o fim do mundo ter um filho, mas é o fim do meu mundo. Mas ele não entende, nunca entendeu nada... Não quero um filho do sexo, não quero. Quero um filho do amor, e já não faço amor com ninguém há mais de 5 anos... Sim, estou bem. Há mais quem esteja disposto a entrar na minha cama quando eu quero sem me cobrar mais nada.
Por falar em filhos, a Luísa está grávida. O pai ligou ontem histérico a dizer que eu ia ter um irmãozinho. Consegui engolir o trivial "Não, obrigada mas não estou interessada" com que despacho os vendedores de aspiradores. Queria que eu fosse lá a casa para comemorar. "Não, não insista. Obrigada mas não estou interessada. Já tenho um irmão, não preciso de outro." Limitei-me a dizer-lhe que não ia lá jantar. Eu já tenho um irmão. Não preciso de um irmão feito por um pai distante e uma puta em lençóis que a minha mãe comprou.
Queria que estivesses aqui... Às vezes apetece-me fugir para longe disto tudo, desta confusão em que a minha vida se transformou. Um sítio bem longe, onde ainda estivesses vivo. Onde ele ainda estivesse vivo... Fazes-me tanta falta... Quando me pediste desculpas no hospital, devia ter dito que só te desculpava se continuasses vivo...
A avó diz que estás num sítio melhor. Quando te fartares, foge do céu, materializa-te e telefona-me a marcar um ponto e eu fujo contigo. Fugimos para um sítio onde os anjos não te encontrem para te obrigarem a voltar lá para cima, onde as inseguranças, a tristeza e os medos sem rosto não me encontrem a mim.
S.M.
.
.
.
Ah! Estás aqui! Continuo sem perceber essa tua necessidade de todas as sextas-feiras te sentares na minha campa a olhar para uma fotografia que nem sequer me favorece. Quando é que percebes que eu estou quase sempre ao teu lado! Tu, que me conheces melhor que ninguém, devias saber que não consigo estar muito tempo quieto no mesmo sítio.
Se ao menos conseguisses ouvir o que eu digo... E tenho tanto para te dizer! Tento agarrar-me ao teu "Nada acontece por acaso", mas a verdade é que não encontro qualquer sentido para tudo isto que aconteceu. Morri-te e deixei-te viúva mesmo antes de te casares, deixaste o curso a meio e agora passas o dia com bandejas na mão a aturar gajos bêbedos. E tenho a certeza que davas uma excelente arquitecta... A mãe aparece morta em casa com uma fotografia minha na mão, o pai enrolou-se com a Luísa...
Qual é a lógica subjacente a isto, mana, diz-me? Nunca percebi a passividade com que aceitas tudo. Que merda! Continuo a achar que tudo podia ter sido diferente se eu não tivesses insistido com o Pedro para levar o carro. Ele parecia tão nervoso, só quis ajudar... "Eu levo o carro, não vás tu desistir e deixar a minha irmã à seca!" A estrada. O sorriso nervoso do Pedro. O camião. Escuro. Sangue. O Pedro morto ao meu lado...
Se pelo menos me ouvisses... Queria que soubesses que te amo muito, que dói ver-te todos os dias e nada poder fazer para te tirar do fundo do poço... Queria poder dizer-te uma vez mais que estarei sempre aqui para ti... Nunca cheguei a dizer-te como estavas linda naquele dia. Estavas tão linda mana! Foste a noiva mais bonita que eu vi em toda a minha vida. Foste a última coisa que vi antes de morrer... "Desculpa mana, desculpa" "Não sejas tontinho. Vais ficar bem, vai ficar tud..."

2 comentários:

AnCaLaGoN disse...

Gosto, gosto, muito, muito, gosto ainda mais da personagem que não quero que se desperdice a vida a chorar.... gosto, tá tão bem escrito e tão bonito :)
Já quase que não me lembrava que tinhas pensamentos tão bonitos.

Anónimo disse...

O que é que queres dizer com o "Já quase não me lembrava que tinhas pensamentos tão bonitos."? É pá... uma gaja partilha o desejo de morrer numa casa de banho de um comboio e fica rotulada como doidinha para sempre! :)